Já em setembro teve este espaço a honra de começar a abrir este baú e a espreitar os seus tesouros. Noticiou-se, então, a sessão pública de apresentação da obra. Hoje deter-nos-emos um pouco no recheio desta arca de encantar.
Verdadeiro baú herdado de avós, deixa escapar pela fechadura a magia da uma infância mais ou menos longínqua em que de terras distantes, príncipes e princesas, sapateiros e lenhadores, animais falantes e sábios nos visitavam para nos deixarem os seus ensinamentos. De facto, enformado pelos contos tradicionais pela estrutura narrativa e pela caracterização das personagens, este livro persegue os objetivos daqueles ao manter o maravilhamento da ação e ao elevar a sua dimensão espiritual, pólos impulsionadores da sua criação, segundo se pode ler na introdução lavrada pelo próprio autor.
E num tempo veloz em que a sabedoria e a técnica depressa destronam os artífices e povoam as aldeias, transformando-as em metrópoles, haverá ainda disponibilidade para a ingenuidade destes ensinamentos? Talvez agora mais do que nunca! Quando as 12 horas do dia são ocupadas com o nervosismo dos mercados financeiros, as notícias de falências em catadupa, as diversas sombras da corrupção, da fraude e da manigância a pairar nos variados setores das comunidades, com a perseguição obsessiva do lucro fácil que tantas vezes implica a exploração do Homem pelo Homem, quando em redor este tem sido o nosso passado e é o nosso presente, nada mais assisado que abrandar o ritmo frenético do quotidiano e reequacionar a verdadeira essência das coisas e a verdadeira essência da existência.
É assim que nos colocamos perante a necessidade de assumir, sem vergonha, o alimento da nossa interioridade, a busca da força motriz da ação humana, num contexto universal e ontológico, onde os valores intemporais como a Fé, a Verdade, a Justiça, a Perfeição, a Gratidão, entre outros, são escoras imprescindíveis.
Será neste trilho de autoconstrução que o baú pode revelar-se um verdadeiro tesouro com os seus tesouros verdadeiros: os seus contos que em muitos casos, galgando fronteiras geográficas e viajando no tempo, chegaram até nós, conservando virgem a sua dimensão de espiritualidade e mensagem de Absoluto.
Para ser nosso guia neste caminho, e porque não se trata de uma mera antologia, cada conto é precedido ou seguido de algumas linhas (claramente distintas do texto principal) orientadoras da análise e expressão do pensamento e da conceção de sabedoria do autor.
Luís Filipe Mateus é professor do Ensino Secundário. Nascido em 1961 e residente na cidade de São João da Madeira, a sua infância foi dominada pela influência dos contos tradicionais, facto que se reflete na presente antologia. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, consagra-se desde há alguns anos ao estudo do que denomina ESPIRITUALIDADE ANALÍTICA, uma área do conhecimento humano que pretende fundir a Fé e a Razão humanas. Acerca de si próprio, o autor prefere considerar-se não um escritor, mas um homem que escreve sobre o que pensa de si próprio, dos outros e do mundo. Exerce atualmente as funções de professor bibliotecário.
... do tesouro, uma pérola! *
A Lanterna de Vidros Vermelhos
Na bela cidade de Marraquexe em Marrocos vivia um pobre pasteleiro que, face à sua má fortuna, decidiu partir para outras terras com a esperança de encontrar uma vida melhor. Ahmed, assim era o seu nome, reuniu a única coisa que tinha, uma lanterna de estanho de vidros vermelhos, e começou a sua viagem.
Ao fim de vários dias, chegou a um próspero vale, onde foi recebido pelo xeque daquele lugar, um homem generoso e hospitaleiro. Em retribuição pela sua hospitalidade, Ahmed presenteou-o com a única coisa que tinha: uma lanterna de vidros vermelhos.
O xeque examinou-a com assombro, porque naquela cidade não se conhecia o cristal, e ver a luz de uma vela a brilhar através de um vidro vermelho, parecia-lhe um espetáculo maravilhoso. Como poderia retribuir adequadamente aquela dádiva maravilhosa, se só possuía montões de ouro e de pedras preciosas? Ofereceu então a Ahmed doze camelos carregados de pedras preciosas e este, surpreendido, regressou a Marraquexe, onde construiu um magnífico palácio rodeado de jardins.
Ahmed tinha um irmão chamado Said, que gozava de certa riqueza, mas que nunca tinha ajudado o seu irmão quando este necessitara. Invejoso com a sorte de Ahmed, foi vê-lo e ficou ao corrente de como tinha obtido a sua surpreendente fortuna. Pensou então: "Se o idiota do meu irmão conseguiu toda esta riqueza em troca de uma simples lanterna de vidros vermelhos, o que não me daria a mim o xeque em troca de um presente realmente valioso?"
E foi assim que Said vendeu tudo o que tinha, carregou os seus pertences numas mulas e partiu, seguindo o seu caminho. Durante a viagem foi no entanto assaltado por uma quadrilha de ladrões que lhe roubaram tudo, vendo-se então ele tão pobre como anteriormente o tinha sido Said. Todavia, decidiu prosseguir viagem, até que um dia chegou finalmente ao seu destino.
O xeque acolheu-o com muita hospitalidade. No momento de partir, Said ofereceu-lhe como prenda a única coisa com que tinha ficado, um velho relógio de latão sem nenhum valor. Mas naquela cidade nunca se tinha ouvido falar de relógios e por isso o xeque apreciou aquele presente mais do que qualquer outra riqueza. Pensando como retribuir aquela maravilhosa, oferta e considerando que as jóias não significavam nada, que eram simples bagatelas, chegou à conclusão de que só havia no seu palácio um tesouro digno daquela incomparável máquina de medir o tempo. Com infinito pesar, o xeque ofereceu a Said o seu objecto mais apreciado: a lanterna de vidros vermelhos que sempre levava consigo.
Nem vale a pena dizer que os ladrões não incomodaram Said no seu caminho de volta a Marraquexe.
Esperarmos à partida a gratidão e a generosidade alheias é um infeliz erro de apreciação de quem não conhece a natureza humana e por isso a atitude do xeque da história anterior não é de forma nenhuma a regra que prevalece. Então quando se trata de questões de dinheiro... O que é frequentemente certo é que a maior parte das pessoas está• tão ocupada a desfrutar dos benefícios da gratidão dos outros, que nem sequer pensa em correspondê-la com um gesto amável ou uma retribuição. A vida está cheia de mal-agradecidos que defraudam as expectativas dos seus benfeitores. Mais vale pois adoptarmos a atitude do imperador romano Marco Aurélio que escreveu no seu diário: "Vou avistar-me hoje com gente (...) egoísta e ingrata. Mas não me sentirei surpreso ou perturbado pois não posso imaginar o mundo sem tais pessoas".
Se aceitarmos as pessoas assim, como elas são, imperfeitas, não teremos de nos incomodar depois com a sua ingratidão. A opção contrária pode fazer-nos resvalar para um certo autismo: não fazermos nada pelos outros nem manifestarmos a nossa boa vontade para não sofrermos desilusões. E que excelente alibi para desculpabilizarmos o nosso egoísmo!
(...)
*texto transcrito na íntegra e parte do seu comentário, com a devida autorização do seu autor.
BAÚ DOS TESOUROS
Sabedoria e Espiritualidade na Narrativa Tradicional
MANUAL DE ESPIRITUALIDADE ANALÍTICA
• Mais de 2500 anos de sabedoria milenar das tradições romana, grega, africana, chinesa, persa, árabe, europeia ocidental e de leste, ameríndia, entre outras, reunidos num único volume.
• 255 histórias oriundas da imaginação do autor e das seguintes religiões: judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo, religiões tribais primitivas
• 23 temas repartidos por 19 capítulos
• Fruto de dez anos de investigação e de trabalho (2001-2011)
• 33 ilustrações do artista plástico sanjoanense Fernando Veloso
• 150 referências bibliográficas
• Mais de 900 páginas de texto
Objetivo do projeto: captar nas literaturas das várias culturas e tradições uma sabedoria e uma espiritualidade que possam ser comuns a todos os povos, épocas e formas de pensar.
Destinatários preferenciais da obra: Professores e alunos das disciplinas de filosofia, psicologia e formação cívica, psicólogos, catequistas, dirigentes de comunidades religiosas, assistentes sociais, gestores e formadores de recursos humanos, chefias de empresas e de outras organizações.